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EM DEFESA DO GESTO DE TRAPEAR – por Giuliano Tierno de Siqueira

Ler deriva, sobretudo, de legere que significa dizer, colher, escolher, recolher. A proposta da Cia Circo de Trapo é colocar a “colheita” na cesta básica. Entendo este gesto como colocar no cesto a leitura e defini-la como um acontecimento básico na vida de todos. Este é o ato político mais importante deste projeto, a partir da interpretação da vista do ponto que ocupo no mundo. Ler é direito e necessidade básica de todos.

Cesta básica é um conjunto formado por produtos utilizados por uma família durante um mês. A Cia Circo de Trapo inclui nesta cesta: livro, leitura e narração oral desde 2004. Um gesto de tornar a cultura um produto básico para se colocar no – dentro do – cesto. Os artistas não só atribuem ao livro e à leitura – e a tudo que vem junto com esta experiência – a categoria de básico como também o depositam num cesto comum.

No imaginário de todos nós o cesto é o objeto que levamos aos convescotes nos dias “livres”, como num domingo ensolarado. Nele são transportados todos os tipos de alimentos. É também no cesto que, em muitas culturas, as crianças descansam. O cesto também já está no imaginário popular como o lugar em que vive a “grande cobra” que será acordada pelo flautista. É o cesto um dos utensílios primeiros quando lembramos das sociedades tradicionais. Homens e mulheres articulando e rearticulando a palha e as fibras para que seja possível dar uma forma ao objeto. O cesto que guarda e que distribui. O cesto que transporta e que se abre para a partilha.

Olhando de longe – sim, porque é esta a minha experiência com a Circo de Trapo – observo um gesto de doação constante. Explico: uma memória surge-me e é como se eu sentisse o cheiro de um final de feira da minha infância. Lembro das pessoas que não tinham como comprar os produtos vendidos na feira livre e aguardavam até o final para catar as sobras, para recolher (ler) o que sobrava. Ouvia dizer que aquele instante da feira era a “xepa”. Um gesto de pegar o que os outros consideravam lixo, atribuindo-lhe um sentido vivo, um sentido de utilidade, um sentido de uso. Era um gesto de tirar o resto da condição de qualquer coisa para a condição de necessário. Um olhar que nunca vou esquecer. A falta apura os sentidos. O básico. O gesto de abaixar e guardar no cesto o produto “inútil” deixado por tantos – de retirar da categoria de lixo, de resto e elevar para a categoria de produto – é intimamente relacionado com a necessidade e com a certeza de que se desvalorizava algo de muito valor. É isto o que fazem os trapeadores do circo: em meio à ventania dos entretenimentos, dos excessos de informações etc, elevam o livro e a leitura à categoria de produto. De bem básico necessário.

Algumas palavras desta pequena reflexão: cesta e básica; livro; circo; trapo; leitura. O ato realizado pela Circo de Trapo é o ato de trapear. Literalmente “agitar-se ao vento”. Eles, resolutos, “trapeiam”, agitam-se ao vento. E nesta agitação colocam-se no epicentro da democracia. Democracia é o ato de tensionar o conhecido e legitimado (e junto com isto, a regra e a sua naturalização) com vistas a torná-los cada vez mais útil aos que são legislados pelo conhecido e legitimado e que muitas vezes já não serve para as dinâmicas sociais, culturais, econômicas etc que existem. E como se faz isso? Por meio das diversas interpretações acerca do uso de um espaço, de um conjunto de símbolos, de um conjunto de relações. Agitar-se ao vento é estar a “trapear”, e, neste sentido, o ato deste grupo é o de exercitar o contínuo valor da democracia. Lugar em que cabem todas as leituras. Lugar em que cabem todas as interpretações. Lugar de ventos agitados. É bom lembrar que “cabem” todas as interpretações, mas não está garantido este cabimento. É preciso muitos “trapeamentos” para que este exercício seja contínuo e para todos. Quiçá este gesto generoso continue. Evoé.

Giuliano Tierno de Siqueira é diretor de teatro, contador de histórias e professor. Doutorando e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP. Coordenador e professor do curso de pós-graduação lato sensu A Arte de Contar Histórias – Abordagens poética, literária e performática. Autor e organizador de livros na área da educação e de contação de histórias.

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