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A caminhada dos errantes

Diz-se que em uma tribo no sul da África quando alguém faz algo errado, o “errante” é levado ao centro da aldeia e todos o cercam. Durante um ou dois dias, todos dizem o quanto ele é importante e relembram todas as coisas boas que ele já fez. Sawabona é o cumprimento desta tribo que quer dizer: “eu te respeito e te valorizo”. Em resposta, se diz: shikoba, que significa “eu existo pra você”. Há algo muito poderoso nesta cultura: a empatia.

Recentemente, tive a oportunidade (triste e honrosa) de visitar uma das unidades da Fundação Casa. Fui a uma unidade de internação masculina, através do trabalho de uma grande narradora de histórias. Ela narrou histórias para olhos curiosos. Sorrisos que saíram fácil e que não queriam mais cessar. Ouvidos atentos. Se vocês me perguntarem o que eu vi, responderei: eu vi crianças. Porém, não eram quaisquer crianças: eram predominantemente negras e pobres. São filhas da divisão de classe, do preconceito, da desigualdade social. Eu vi crianças encarceradas. Enquanto escrevo, me lembro dos textos de Solano Trindade, “Tem gente morrendo, Ana” ou “Tem gente com fome”. Tem criança presa. TEM CRIANÇA PRESA. Eu não consigo entender, tem criança presa.

Crianças uniformizadas. Cabeças raspadas. Todos os movimentos vigiados. Movimentos previamente estabelecidos. Fica sentado, menino! Horários determinados. Falas limitadas. Vocabulários impostos, como o “sim, senhora”, que ouvi incessantemente. Há o treinamento daqueles corpos e, muito pior, daquelas almas. Elas estão sendo “corrigidas”, “vigiadas” e “punidas”. O nosso Estado pune, ao invés de acolher. Segrega, ao invés de incluir. Violenta. Michel Foucault em seu importante estudo “Vigiar e Punir” traz alguns apontamentos ainda presentes nos dias de hoje em relação à punição como meio de coerção e controle da lei e da ordem e como instrumento de defesa de interesses das classes dominantes.

A Câmara dos Deputados aprovou em 2015 a redução da maioridade penal para crimes hediondos, as almas agora poderão ser presas a partir dos 16 anos. Uma pesquisa realizada também em 2015 pela Fundação Escola de Sociologia e Política – FESPSP no município de São Paulo (antes da decisão da Câmara ser tomada) apurou que mais de 60% dos entrevistados eram a favor da redução da maioridade penal, a grande maioria também concorda com a Câmara. Somos controlados e controladores.

Foucault apontou ainda, que o controle e a punição estão presentes em diversas instituições sociais: como a escola, hospitais, quartéis, etc. Logo, estamos permeados por essa lógica em todos os sentidos. A punição é um caminho transformador? Como contribuir para o processo de transformação e resiliência de uma criança em situação de vulnerabilidade? A punição sempre supõe violência e falta de diálogo. Somos, portanto, uma sociedade violenta?

Tive a sorte de ouvir (ou interpretar assim) de Ilo Krugli (diretor de teatro, ator, artista plástico e escritor) em um de seus espetáculos do grupo de Teatro Vento Forte, que na vida, a gente precisa cavar frestas; que a vida é a busca pelas frestas, pelos respiros, pelos espaços. Os espaços não nos são dados. Hermann Hesse, escritor suíço narra em sua obra, “Demian”: “A ave sai do ovo, o ovo é o mundo. Quem quiser nascer, precisa destruir um mundo”. A luta é inerente à vida.  Pra uns, o caminho é mais ameno, pra outros, é duro e cheios de pedras, das grandes e pesadas. Que possamos dividir as cargas desta caminhada.

Marcela Camasmie é mãe de um menino lindo dos olhos falantes. É feminista, mediadora de leitura, produtora cultural e atualmente estuda Sociologia e Política pela FESPSP – Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atua há 8 anos em projetos socioculturais relacionados à leitura e literatura. Hoje também é colaboradora do site da Cia. Circo de Trapo com textos sobre infância, maternidade e outras inquietações.

Foto: http://www.portalcbncampinas.com.br/?tag=fundacao-casa

 

 

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