anatere

Metade da mãe é amor, a outra é flor

Acabara de separar a sua alma de outra. Com o coração destroçado, buscava uma faísca de sonho em meio a um emaranhado de caminhos. As veias esgarçadas pelo sangue quente corrido depressa e constante. Esgotamento. O desejo de assentar. O desejo do abraço inteiro. Da presença total. O desejo era de não ser mais invisível. Era flor murcha, sem vida, sem água e sol. O primeiro dia em sua nova morada foi deserto. Queria fugir, sumir, mas ali era o seu único teto possível. As lágrimas desciam sem pedir licença. Como colorir e habitar sozinha tantos metros quadrados? Gostava das coisas rotundas e nutridas. Era possível preencher-se só? Os pertences ainda guardados nas caixas de papelão e amontoados no centro da sala alimentavam a sensação de vazio. Ela fora morar em um apartamento daqueles antigos e grandes. Uma banheira que não funciona. Dois quartos amplos e um pequeno: o pequeno era o quarto da bagunça, destinado a esconder o que ainda não tinha lugar certo em sua vida, o quarto ficou lotado. Um quarto era só dela, o outro do fruto que brotara do amor partido. Era um menino. Bonito, de chamar a atenção da rua toda: “- Diz bom dia pra moça!” Dizia que não, se escondendo. Era tanta gente querendo falar com ele, que ele se refugiava no “não”. As pessoas o assustavam com frases desnecessárias que ele não compreendia e que visivelmente invadiam bruscamente seu mundo ainda em construção. O convívio com a mãe que pela primeira vez conhecia a intensidade de ser materna, era um mergulho em dualidades. Dor e amor. Presença e distância. Ela que tentava se equilibrar em bases frágeis, normalmente caia instável numa sensação de incapacidade e infelicidade. As bases precisavam ser construídas do começo. Tijolo por tijolo. E não haviam ajudantes para a obra. Talvez esses alicerces edificados sem ajuda sejam os mais resistentes. Mãos à obra. Respiração. Força de alguns amigos. Sentidos novos. Logo apareceu uma outra alma. Se apaixonou. Poderia ser uma relação bonita. Foi (não sabe). Alguns lugares profundos que habitavam sua alma eram tão impenetráveis, principalmente por outras almas também cheias de lugares impenetráveis. Ainda era preciso cuidar da confiança para abrir a casa, as janelas pra deixar outros coabitarem seu lar. Hoje, sua alma está meditando. Caminha um pouco desconfiada. Mas, a passos firmes. Feliz e triste. Porque assim é o real. O coração não acalmou. Voltou a estudar. Conheceu gente bonita por dentro (e se conhece a cada dia mais). O fruto da flor está cada dia maior e mais bonito. Continua chamando a atenção da rua toda com seus olhos de lampejo. São eles que alimentam sua necessidade de luz. Ele gosta de música e de brincar de espada. Lutam juntos (de verdade e de mentira). Seu nome significa “bastão de combate”. Suas falas a deixam paralisada: como é sábio todo ser que ainda não foi atacado pelos medos do mundo dos grandes. Viver a vida de mãe é um duelo: assim, a flor carrega seu bastão de combate debaixo do braço. Hoje a flor aprendeu a amar. Dar colinho e abraço quente. É bonito de se ver. A flor cresceu. O eclodir de uma flor sempre começa tímido. Mas, aos poucos vem o caule, depois as folhas. Ela se abre aos poucos. Levanta aos poucos. Cada espécie em seu tempo. A flor precisa entender o seu tempo pra tomar seu espaço no mundo. E assim, de repente, quando ninguém espera, ela brota. Linda. É sempre um acontecimento quando nasce uma flor. É sempre um acontecimento quando nasce uma mãe. E é sempre um acontecimento quando ela percebe-se, flor. Seja lá, qual for. (gratidão, Leminski)

Marcela Camasmie é mãe de um menino lindo dos olhos falantes. É feminista, mediadora de leitura, produtora cultural e atualmente estuda Sociologia e Política pela FESPSP – Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atua há 8 anos em projetos socioculturais relacionados à leitura e literatura. Hoje também é colaboradora do site da Cia. Circo de Trapo com textos sobre infância, maternidade e outras inquietações.

[imagem da artista Ana Teresa Barboza]

 

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