O que é essa metade da humanidade que, vivendo ao lado dos e com os adultos, encontra-se ao mesmo tempo tão dramaticamente separada deles? Nós a fazemos carregar o fardo dos seus deveres de sujeitos de amanhã sem lhe conceder os seus direitos de sujeitos de hoje.
Janunsz Korczak
Eram duas crianças: uma de seis e outra de quatro anos. Irmãos. Ambos ficavam com a avó em alguns dias da semana para que sua mãe fosse trabalhar. Nas brigas corriqueiras por disputa de brinquedos, por horários para comer, para dormir, escovar os dentes, o conflito era inevitável, porque conflitos são inevitáveis. Como mediá-los? Como resolvê-los? Quando já não haviam mais argumentos, a avó era autoritária. Exigia em tom firme que as tarefas que ela havia determinado fossem realizadas pelas crianças. Caso as crianças não o fizessem, castigo, broncas, grito. Quando o caso era de briga entre os irmãos, ela acabava interferindo e decidindo por si mesma quem estava certo, quem estava errado e quem deveria pedir desculpas ao outro. E assim, todas as vezes que a avó ia embora da casa dos netos, pensava: “eu queria ter feito diferente, queria ter falado diferente com eles”. Pra nós, adultos, muitas vezes os conflitos das crianças podem parecer insignificantes. Pra eles, substancial, porque esta é a vida deles. Através destas experiências que sua personalidade e postura no mundo serão construídas.
As crianças, em nossa sociedade, cotidianamente têm suas vozes caladas ou diminuídas. A avó reproduzia estas práticas de silenciamento porém, não sem sentir-se insatisfeita. Era uma senhora com os ouvidos generosos. Percebia que não estava construindo uma relação honesta. Historicamente, o reconhecimento da criança como um Sujeito de Direito dependeu de questões culturais e de fatores demográficos (GRUNSPUN, 1985). Segundo Philippe Aries, um importante historiador sobre a família e a infância, antes não se pensava que a criança possuia já toda a pessoa humana, como cremos habitualmente hoje. Para ser humano, era preciso ser adulto. Hoje, depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração dos Direitos da Criança, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), muitos pontos que protegem o direito de “ser humano” da criança são postulados. Porém, as crianças ainda são minimizadas, no sentido de que os adultos estabelecerem uma atmosfera autoritarismo e subordinação. Uma relação em que anseios, medos e opiniões não são considerados. Todos os seres humanos se comunicam com outros seres humanos, sejam eles grandes ou pequenos. E o respeito deve ser o mesmo.
A avó, danada que só ela, incansável na busca por novos sentidos conheceu a Comunicação Não-violenta, teoria criada por Marshall Rosenberg – uma técnica de comunicação centrada na escuta empática, fala autêntica e na percepção das necessidades universais dos seres humanos. As necessidades universais são muitas. E em todos os seres humanos em qualquer lugar do mundo, iguais. Por exemplo, necessidade de proteção, equilíbrio, acolhimento, aceitação, amor, etc. Como perceber estas necessidades nos outros? E em nós mesmo? Era um novo paradigma de ser e estar no mundo. Uma nova forma de se relacionar com os outros (pequenos e grandes).
Em uma das visitas à casa dos seus netos, um deles pegou em um baú de brinquedos um coração feito de papel. A partir dali, uma disputa pelo objeto começou entre os irmãos. Um achava que o coração deveria ficar consigo porque ele o havia achado primeiro. Óbvio! Era o mais justo! A outra achava que o coração deveria ficar com ela, porque ela o tinha feito. E agora? Foi de repente. Ela teve uma ideia e propôs: vamos jogar um jogo? O jogo se chama “jogo das soluções”. As crianças aceitaram. A partir do jogo eles resolveriam com quem ficaria o coração de papel. O jogo só acaba quando ambos concordarem com a resolução. Um dá uma opinião de porque e com quem o coração deve ficar. Se o outro jogador não aceitar a proposta, o jogo continua. E assim, é a vez do outro jogador sugerir uma solução. As opiniões foram sendo dadas, até que de repente o menino mais novo começa a fazer um gesto como quem vai rasgar o coração de papel no meio (e o dá avó também!). E ela pensa: o jogo não deu certo. Mas, rápida, disse a ele: Cortando o coração ao meio você quer sugerir que cada um fique com uma metade, é isso? E ele fez que sim. A avó perguntou pra irmã se assim estava bom pra ela. Ela fez que sim. Viva! O coração foi partido sem dor pra ninguém. E um novo jogo foi criado. Se fosse como antes, ela teria pego o coração e guardado: “ninguém brinca então!”. Mas, de um jeito muito criativo ela fez com que eles se sentissem compreendidos e respeitados. Ambos. E o jogo só acaba quando ambos estão bem. É preciso aprender a ceder. É preciso aprender a ouvir. E é preciso aprender a dizer o que queremos. O jogo das soluções é tão legal que contribui pra tudo isso.
Passado algumas semanas, a mãe das crianças perguntou: O que a senhora fez com essas crianças que agora eles brigam e elas mesmo se entendem sozinhas? Ela respondeu: Eu os escutei e os fiz se escutarem. Essa história foi contada pela Sandra Caselato e por Yuri Haasz em um curso de Comunicação Não-Violenta que participei. Minha gratidão imensa. Eu queria mesmo era conhecer essa vovó querida e especial. Se este texto chegar em você, vó, me escreve? Quero te conhecer e agradecer por você engrandecer minha trajetória e entender finalmente, o que é democracia. Pois, a democracia não nasce do consenso e sim, do dissenso e do desafio de criar um consenso.
Marcela Camasmie é mãe de um menino lindo dos olhos falantes. É feminista, mediadora de leitura, produtora cultural e atualmente estuda Sociologia e Política pela FESPSP – Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atua há 8 anos em projetos socioculturais relacionados à leitura e literatura. Hoje também é colaboradora do site da Cia. Circo de Trapo com textos sobre infância, maternidade e outras inquietações.
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